(Por Cibelle Bouças — O Valor Econômico, em 25/05/2020)
O setor calçadista, que previa crescer 2,5% neste ano, agora trabalha com a possibilidade da produção encolher 30%, voltando ao patamar de 16 anos atrás. Em abril houve retração de 70% no volume fabricado, após queda de 10% no primeiro trimestre, por conta da crise causada pela covid-19. A indústria e o varejo enfrentam a falta de demanda com demissões, renegociação de contratos e suspensão de pagamentos a fornecedores.
A Associação Brasileira de Lojistas de Artefatos e Calçados (Ablac) estima que a dívida de varejistas para com os fabricantes seja de R$ 2,8 bilhões. “Parte das indústrias suspendeu os protestos de títulos, mas o setor precisa de recursos para arcar com essas dívidas”, diz o presidente da Ablac, Marcone Tavares.
Os fabricantes de calçados, por sua vez, também não estão pagando os fornecedores de insumos. Ilse Guimarães, superintendente da Associação Brasileira de Empresas de Componentes para Couro, Calçados e Artefatos (Assintecal), diz que “além da inadimplência, o setor sofre com a falta de pedidos. Hoje os fabricantes de componentes estão vendendo 15% do que vendiam no ano passado. E não há novas encomendas”. Das 3,8 mil fabricantes de componentes, cerca de 600 fecharam as portas neste ano. “O setor é composto em sua maioria de micro e pequenas empresas. E elas não conseguem sobreviver”, disse.
Para o ano, a Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados) estima uma queda de 30% na produção, o que corresponde a 260 milhões de pares a menos em relação aos 963 milhões fabricados em 2019. Se essa previsão se concretizar, o setor voltará aos níveis de produção de 2004. No varejo, as vendas de calçados caíram por volta de 12% no primeiro trimestre, aprofundando a queda para 91% em abril, segundo a associação dos lojistas. Para o ano, a entidade projeta uma queda da ordem de 25%. O real desvalorizado frente ao dólar deixa o calçado brasileiro mais barato, mas não há demanda no mercado externo. Para as exportações, o setor prevê uma queda entre 22,4% e 30,6%, fechando com vendas entre 89 milhões e 80 milhões de pares, que seria o pior resultado desde 1983. “Hoje, as indústrias de calçados operam com um nível de ociosidade de 70%. Em alguns Estados e municípios, o varejo começou a reabrir, mas sabemos que o comércio está estocado e vai demorar para voltar a fazer encomendas à indústria”, diz o presidente da Abicalçados, Haroldo Ferreira.
A Grendene informou que começou a ver uma pequena retomada nas encomendas para mercado interno e mercado externo. “Mas o volume de pedidos ainda é muito tímido e bem distante do que se via antes da pandemia”, diz o diretor de relações com investidores da Grendene, Alceu de Albuquerque. As quatro fábricas da Grendene, no Ceará, estão paradas. Na semana passada, Grendene e Vulcabrás adiaram novamente a retomada das fábricas instaladas no Ceará, devido ao avanço da covid-19. A nova data é 1 de junho. “Hoje o que a companhia consegue vender são produtos que já estão prontos nas fábricas. Temos pedidos em carteira, mas é um volume bem inferior ao do ano passado”, diz o diretor da Grendene.
O varejo tem estoques suficientes para vendas até setembro, levando em conta o nível atual de demanda. “Em maio, cerca de 20% do varejo calçadista já voltou a trabalhar. Mas as vendas estão 72% menores do que no ano passado. A expectativa é que em junho as vendas sejam 70% menores e até agosto sejam de 50% a 60% menores”, disse Tavares, da Ablac.
A Calçados Bibi fechou abril com 75% de queda nas vendas para o varejo e comparação ao ano passado, disse a presidente da companhia, Andrea Kohlrausch. Além de produzir calçados infantis, a companhia administra uma rede de lojas de franquia que leva o mesmo nome. Em maio, das 120 lojas da rede da Calçados Bibi, 21 foram reabertas -- a maioria na região Sul. A executiva disse que, as lojas apresentam neste mês uma queda de 42% no faturamento em comparação com o mesmo período do ano passado. “O desempenho varia muito de loja para loja. Tem unidades que reabriram com 20% a 30% do faturamento que faziam há um ano. Tem loja que já está até com crescimento em relação ao ano passado”, disse Andrea. Acrescentou que renegocia com o restante do varejo mais prazo para faturar os pedidos já feitos pelos lojistas. “Já conseguimos renegociar 75% dos pedidos. O restante está em andamento”, afirmou.
Os representantes do setor calçadista pleiteiam ao governo federal uma linha de financiamento, via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES), de R$ 1 bilhão. Esse crédito seria destinado a empresas calçadistas de pequeno e médio portes. O setor também espera que o governo prorrogue o prazo da medida provisória (MP) 936, que flexibiliza as normas trabalhistas, para evitar demissões em massa. Neste ano, até 19 de maio, as indústrias de calçados já haviam demitido 32,8 mil pessoas, o que corresponde a 12,2% da força de trabalho do setor. No varejo, as demissões já equivalem a 5% dos 1,15 milhão de funcionários (cerca de 58 mil). Na indústria e no varejo, a maioria dos empregados está com contratos suspensos ou com redução de jornada e salário. “Se o governo não prorrogar a MP 936, a partir de julho o setor terá que demitir porque não há perspectiva de recuperação antes do quarto trimestre”, diz Ferreira.
A Grendene, por exemplo, planeja retomar as atividades das suas fábricas no Ceará em junho com redução de jornada e salários de 70%. Atualmente, os funcionários estão parados, devido a restrições adotadas no Estado. “Estamos usando todos os instrumentos disponíveis para evitar demissões”, disse Albuquerque. Além de fazer uso da MP, a empresa já antecipou férias e descontou do banco de horas dos funcionários os dias parados.